Vivia no apartamento de cima. Era o vizinho mais simpático que
tinha. Sorria sempre que me cruzava com ele, ou cada vez que lhe
levava os sacos das compras até ao quinto andar. No fim do Verão, das minhas
férias, fui levar-lhes um saco com batatas, cebolas e ovos que os meus pais
mandaram de propósito para eles. Reparei que já não tinha grande força para agarrar
o saco, mas sorriu-me de volta, agradeceu-me: “Obrigado, menina Liliana”. Não
precisavam, mas eu gostava de lhes trazer comida da terra. E eles também.
Soube hoje que tinha morrido. Não sei quando, não tive coragem de perguntar à
dona América, a mulher, que depois de 53 anos lado-a-lado o descreveu assim: “Era
o meu melhor amigo”. Chorou. Vestida de preto dos pés à cabeça disse-me que tem
estado sozinha em casa. Doeu-me.
Há três anos que me disse como se chamava. Esqueci-me.
Lembro-me de outras coisas mais importantes do que a etiqueta do nome. Nunca
mais lhe perguntei o nome porque isso não interessava. Para mim era o marido da
dona América e o vizinho mais simpático que eu tinha. Era o vizinho que dizia
aos meus pais - das poucas vezes que cá vieram - que eles tinham uma “rica
filha”, ou que pôs a minha avó a chorar quando lhe disse que gostava muito de
mim. E disse-o sem conhecer muito da vizinha do 4º dto. Sabia apenas o que lhe
dizia quando falava com ele na soleira da porta ou à mesa de jantar. Foram
poucas vezes, deviam ter sido mais. Fazemos pouco, muito pouco por quem tem
tanto para dar. Eu fiz pouco.
Não tive coragem de perguntar há quanto tempo tinha
sido, tal como não tive coragem de me encarar por há mais de um mês não os ir
visitar. Estou triste porque já não vou ouvir o meu vizinho de cima arrastar
cadeiras no chão. Mas fico ainda mais triste por me dar conta que vivo num
mundo onde uma pessoa desaparece e a vizinha de baixo não dá conta disso. E eu
sou a vizinha de baixo.
Hoje lembrei-me de Tomásia Ofélia. Ela também morreu e só eu
dei pela falta dela em Lisboa.
http://www.ionline.pt/artigos/portugal/novas-rendas-lei-entrou-porta-dentro-ameaca-roubar-lhes-casa
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